“Burro digital”: o preconceito errado para vítimas de burlas
O João tem 50 anos, e durante muitos desses anos teve uma conta bancária onde praticamente apenas usava dinheiro e cartões físicos de multibanco. No entanto, com a pandemia, o João viu-se obrigado a começar a usar meios alternativos para realizar pagamentos, com termos como “contactless” e “MB Way”, coisas que nunca vira.
Não sendo muito entendido com tecnologias, o João decidiu chamar o seu neto mais novo para o ajudar. Lá ativou-lhe e ensinou a usar o sistema contactless nos seus cartões, e mostrou como o MB Way pode ser útil. Até para enviar uma prenda de tempos a tempos para o neto.
O caso do João não é único. Durante a pandemia, milhares de utilizadores começaram subitamente a ter de alterar a forma de usar os seus meios de pagamento. O MB Way e contas de homebanking foram das que receberam maior adesão.
Não existe como negar que estes sistemas receberam uma grande adesão, e até podem ser bastante úteis para ajudar no dia a dia, a realizar pagamentos ou simplesmente a enviar dinheiro para conhecidos. E muitos dos que, anteriormente, não usavam os mesmos, até que começaram a olhar para estes como algo bastante benéfico para algumas atividades.
O caso do João é um desses, que subitamente começou a ter um meio de pagar rapidamente as suas compras, ou de enviar aquela prenda de anos para o neto mais facilmente. No entanto, isso não o tornou subitamente num expert na área – é uma tecnologia, funciona, moderna… mas como funciona não é algo que o João tenha propriamente interesse em saber para além do básico.
Um dia, o João decidiu comprar um produto usado, onde o vendedor usava o MB Way para pagamento. Era um produto caro, mas era ainda mais caro se fosse comprado novo. Portanto, seria um bom negócio, e com o MB Way isso facilitava bastante o pagamento – já que o vendedor se encontrava na outra ponta do pais.
Nunca tendo feito nada do género, o João pediu as instruções ao vendedor, que rapidamente lhe indicou como abrir a aplicação, e criar o código que, supostamente, seria depois usado pelo vendedor para fazer a cobrança. E assim o João fez: colocou o valor do produto, e deu o código para o vendedor.
Feito. Era agora esperar pela entrega… e esperar… durante semanas. O vendedor ficou incontactável e o João sem o produto e sem o dinheiro. Sem saber, João tinha acabado de cair numa burla – deu permissão a um total desconhecido para levantar uma quantia elevada de dinheiro da sua conta, diretamente do multibanco.
Como não enviou o dinheiro pelo sistema do MB Way, para um número de telefone físico, não existe propriamente um rasto a fazer. O dinheiro foi levantado do multibanco diretamente, o que dificulta também a tarefa das autoridades.
Esquemas destes não são novos, e existem diariamente às centenas. E como estes, existem outros bastante similares.
Seja uma SMS a dizer que a conta do MB Way foi bloqueada, ou que existe uma referência para pagamento em falta de um serviço essencial – água ou luz.
Se está a ler este artigo, possivelmente teria conhecimento para identificar o que seria uma burla. No entanto, faz também parte de uma minoria.
Isto porque nem todas as pessoas possuem conhecimentos técnicos ou de tecnologia para saber identificar o que é ou não uma burla. Para alguns, a tecnologia é algo revolucionário,, que permite milhares de oportunidades, mas, ao mesmo tempo, pode também ter efeitos bastante negativos quando mal usada.
Ninguém é obrigado a saber tudo, e para alguns, plataformas como o MB Way são simples de usar e funcionam. E isso é o que interessa.
Como elas funcionam, quais as funcionalidades ou até mesmo o que esteja escrito na aplicação, tornam-se irrelevantes. O ser humano torna-se mecânico ao fim de um tempo: usamos uma aplicação, e fazemos os mesmos passos praticamente todos os dias. Chegamos ao ponto que estas tarefas tornam-se tão banais no dia a dia, que não olhamos e paramos para pensar duas vezes: isto é mesmo assim?
É tão mecânico de usar o MB Way hoje em dia como de aceder a um link no Google, ou receber uma mensagem direta no Facebook e Instagram.
O João, mesmo sendo fictício, é um caso que acontece todos os dias na realidade. Estava habituado a usar a MB Way, sabia como enviar dinheiro para o neto e fazer pagamentos. Sabia de tal forma que, quando apenas ia fazer um simples pagamento, nem suspeitou que estava a ser enganado.
Não devemos culpar o João porque foi enganado. No final, foi a vítima de alguém que aproveitou o seu desconhecimento para lhe roubar uns euros.
Existe a tendência de pensar que estas situações apenas acontecem “aos outros”, ou que algumas são tão claramente falsas e burlas que, se uma pessoa cair nelas, a culpa é delas mesmas. Essa é exatamente a sensação que quem realiza este género de crimes pretende que as suas vítimas sintam.
Para “nós”, geeks e nerds, uma mensagem com um link “desbloquear-contambway” pode ser claramente identificado como uma burla. Para um João, pode ser um stress imaginar que a sua conta está prestes a ser bloqueada, e o stress faz agir sem clareza por alguns momentos… o suficiente para ser enganado.
A melhor forma de ajudar as vítimas de uma burla, não passa por as culpabilizar de terem caído. Mas sim indicar os passos que devem fazer a seguir.
E idealmente, deve-se informar antes do ato realmente acontecer. Deve-se dar conhecimento o melhor possível sobre o que pode acontecer, como acontecem e quais os pontos a ter em conta.
Da próxima vez que tiver um João à sua frente, experimente indicar-lhe primeiro como usar o serviço que lhe encontra a colocar nas mãos. Indique tanto o bem, como também o mau – porque sabendo o mau, será o primeiro passo para se proteger no futuro.